Também memória de Ir. Bernardo (Gabriel) Sáiz Gutiérrez (1896-1936)
UM MENINO AVENTUREIRO
Com a história do padre Crescêncio Ortiz entrelaçam-se as histórias do padre Angel Matíniez Miquélez e do irmão Gabriel Saiz Gutiérrez. Os três, como se verá, foram assassinados, ou, mais precisamente, ‘desapareceram’ juntos. Por isso, o martírio dos três vem narrado simultaneamente, em seguida aos dados biográficos do padre Ortiz. Depois virão as biografias de padre Miquélez e irmão Gabriel.
Se o padre Jiménez foi um grande missionário, do padre Ortiz deve-se dizer que outra coisa não foi em toda a sua vida: missionário.
Nasceu em Pamplona, no dia 10 de março de 1881. Seus pais, Gumersindo e Luzia, eram profundamente piedosos, o pai até mais que a mãe. Ele confessava-se e comungava todas as semanas, e rezava diariamente o rosário com a família. Dona Luzia pertencia ao Apostolado da Oração e era mulher muito de casa.
Crescêncio, segundo consta em seus apontamentos autobiográficos, gostava muito de aventuras, e Deus lhe proporcionaria uma que seria a maior de todas. Era pequeno ainda quando seus pais se mudaram para Vitória e, em seguida, para Villarreal, onde começou a freqüentar a escola. Mas Crescêncio gostava mais do rio que da escola. Até que o senhor Gumersindo descobriu essa malandragem e lhe deu boas palmadas, acabando assim com os mergulhos no rio.
Outra das suas foi quando entrou na casa do veterinário de Villarreal, vizinho e muito amigo da família, e, vendo uma garrafa que lhe pareceu ser de aguardente, tomou um belo gole... de aguarrás. Logo seu estômago começou a queimar como se tivesse engulido fogo. Gritando e correndo de um lado para o outro, foi acudido pelo veterinário, que lhe deu água e leite, e, enfiando o dedo em sua garganta, fez com que botasse fora a aguarrás.
Quando tinha oito anos, a família volta a morar em Pamplona. Crescêncio, entretanto, ainda não havia descoberto o gosto pelos livros. Certo dia, saiu cedo de casa e ficou fora o dia todo. Ao voltar, o pai lhe deu uma lição que jamais esqueceria, pois lhe deixou marcas pelo corpo que demoraram anos para desaparecer.
Aos onze anos fez a primeira comunhão, e com muito fervor. Mas o fervor acabou quando o fogo das velas pegou nos véus de algumas meninas, e a igreja toda virou um rebuliço só. Seu coração, no entanto, já havia começado a mudar. Não se sentia tão atraído a travessuras como antes. Entrando um dia na Basílica de Santo Inácio, onde trabalhavam os Redentoristas, gostou muito do hábito dos padres, de seu recolhimento e do quadro da Virgem do Perpétuo Socorro. Foi mais vezes rezar ali, até que se atreveu a conversar com o padre Lorthioit e expor-lhe seu desejo de se fazer redentorista.
O padre o examinou e o julgou apto. Seus pais, embora sentindo muito, não se opuseram a sua vocação. E assim foi que, no dia 15 de setembro de 1893, aos doze anos, entrou no El Espino.
Pouco talento, não muita aplicação, bastante desordeiro, isto lhe valeu um belo último lugar no primeiro ano. Mas era jovial e alegre. Para ver se melhorava, procurou ser mais sério. Tornou-se melancólico e tristonho. Logo viu que essa máscara de nada lhe valia, e voltou à sua alegria. Por uma frase dita por ele e mal interpretada pelo Diretor, padre Celestino, quase foi parar na rua. Não fosse o bom senso de um professor, que conseguiu mostrar ao Diretor que o menino não havia tido nenhuma má intenção e que, pelo contrário, o sentido da frase era exatamente o inverso, nada lhe aconteceu. Peripécias aqui, peripécias ali, terminou enfim o colegial e em 24 de setembro de 1899 estava vestindo o hábito que lhe chamara a atenção nos padres da Basílica de Santo Inácio.
No Noviciado, tomou como virtudes preferidas a mansidão e a humildade, para toda a vida; como rainhas de suas devoções elegeu a devoção à Eucaristia e a devoção à Santíssima Virgem. Não tinha o gosto sensível na oração, mas sim grande desejo de purificar-se e crescer na perfeição. Escreveu em seu diário: “Estou certo de que Maria Santíssima, São José, Santo Afonso e Santa Teresa me têm prestado auxílio eficaz em minha aridez, nos meus desalentos, penas, dificuldades e tentações, fazendo-me abraçar todas as cruzes por amor”.
Mais aplicado e mais maduro, não teve nos estudos maiores em Astorga as dificuldades do Seminário menor. Suas notas eram bem acima da média, chegando quase a excelentes. Tanto que, ordenando-se em 28 de dezembro de 1905, e terminado em seguida o último ano de Teologia, foi nomeado professor de Filosofia.
Mas não fora feito para professor. Após breve experiência, destinaram-no à vida missionária, na qual desenvolveu-se de forma extraordinária.
Astorga foi a casa em que mais tempo residiu, e, partindo dali, pregou missões em León, Zamora, Astúrias e principalmente na Galicia, tornando-se um dos grandes missionários de seu tempo. De 1909 a 1921, entre missões e renovações de missões, foram mais de duzentas as que pregou.
Dois anos na Comunidade de São Miguel, em Madri; sete anos na de Valência, e quase outro tanto na de Barcelona, foi onde residiu até 1936, quando voltou à Comunidade de São Miguel, para ali encontrar a morte. Pouco antes dessa última transferência, havia sido designado para trabalhar na América. Alegou que sua saúde não o recomendava para tanto e foi poupado... Poupado para ser assassinado exatamente quando a equipe de missionários partia para o Novo Mundo.
Poucos dias depois de chegado a Madri, teve de abandonar o convento. Saiu com o padre Calvo, pretendendo esconder-se na Torre dos Lujanes, pois padre Calvo tinha muita amizade com seus zeladores. Estes, porém, diante do perigo que correriam se fossem denunciados, uma vez que aquele era um prédio de propriedade do Estado, recusaram-se a recebê-los. Como já era quase noite, voltaram ao convento.
No dia seguinte, 20 de julho, padre Ortiz, padre Miquélez e o irmão Gabriel saíram juntos com a intenção de se hospedarem na casa de uma família muito amiga dos Redentoristas, a casa de Cosme. O jovem Cosme era a alma de todas as obras de apostolado juvenil da paróquia dos Redentoristas, e sua mãe era de tanta confiança dos padres que estes guardaram em sua casa os objetos sacros do convento naqueles dias conturbados. Diante do perigo que corria em Madri, entretanto, esta senhora mudou-se para Ugena, deixando a chave de sua casa no convento para que os Redentoristas fizessem uso dela como se deles fosse. Não obstante essa providência, seus dois filhos, Cosme e Juanito, não escaparam de cair nas mãos dos perseguidores e derramaram seu sangue pelo ideal que sempre os animara.
Vestidos à paisana , os três religiosos saíram de casa lá pelas quatro da tarde e, tendo apenas descido a primeira rua, ao chegarem à praça Cordón, ouviram gritar: “A eles, que são fascistas!” Ao que responderam com valentia: “Fascistas, não! Somos religiosos!” Ali mesmo quiseram linchá-los. Algumas senhoras, no intuito de salvá-los, disseram que eram italianos e pertenciam à Embaixada. Eles, entretanto, revistaram os três, tirando-lhes o que tinham: crucifixos, rosários, medalhas, e, colocando-os num carro, levaram à casa de detenção da rua do Rollo.
As únicas testemunhas de seu caminho para a morte, quando os levaram depois de terem estado na casa de detenção, foram uma jovem da praça Cordón, e um rapaz, Luiz Bernardo, antigo coroinha da Basílica. Luiz reconheceu no carro o irmão Gabriel, que ia com outros dois. A partir desse momento, os três prisioneiros desapareceram, sem que nada mais se saiba de concreto sobre sua sorte final. Apenas que, já depois das oito da noite, um guarda, que se havia interessado por eles, foi perguntar sobre sua situação. Ao que lhe responderam na casa de detenção da rua do Rollo: “Você chegou tarde; foram fuzilados há algumas horas”.
No mês de novembro, algumas lavadeiras da Prisão Modelo, ao serem indagadas asseguraram que eles ainda estavam ali. O estranho é que outros Redentoristas, cinco pelo menos, que por essa época estavam presos na mesma prisão, nunca mais ouviram a mínima referência sobre eles. Se foram levados de carro, como foram vistos, e se nunca mais houve notícias deles, nem do dia ou da hora ou do local da execução – era essa, aliás, a marca registrada dos inimigos da Igreja: fazer ‘desaparecidos’ e não assassinados -, certamente foram de fato fuzilados naquele mesmo dia, conforme informaram na casa de detenção.
Confirmada essa versão, os três formam a vanguarda do grande número de Redentoristas sacrificados na perseguição comunista, pois morreram no primeiro dia dela: 20 de julho de 1936.
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